Cavernas do Tocantins guardam tesouro em fósseis de ursos e outros animais do Quaternário. |
Se cavernas são janelas para a pré-história, o Brasil é como uma mansão escura, onde a maioria delas permanece cerrada. Na vastidão do Brasil Central e Norte, a luz só começa a entrar agora, com os primeiros estudos a mergulhar na escuridão do que pode ser um dos maiores complexos de cavernas do país. De lá emergem fósseis da fauna grandiosa da última Idade do Gelo. Ursos e tatus gigantes, onças maiores do que as atuais, parentes de lhamas e camelos com focinho longo, parecendo personagens de desenhos animados. Animais desaparecidos há milênios, cujo estudo promete iluminar cenários do futuro dos ecossistemas brasileiros, em tempo de mudança climática.
Junto aos fósseis de animais, cientistas descobriram vestígios humanos, como dentes e pinturas rupestres. Ainda à espera do resultado da datação, esses dentes podem ser alguns dos mais antigos registros humanos do país, testemunhos de capítulos desconhecidos do povoamento das terras que hoje são o Brasil.
No passado, um mapa para o futuro
Ao conhecer o passado, compreendemos o presente e vislumbramos o futuro - no clássico ditame da ciência. E para essa viagem no tempo, cavernas são as cápsulas ideais. O isolamento do mundo exterior congela pedaços de eras passadas para a quase eternidade. Foi em busca dessas terras incógnitas que o paleontólogo Leonardo Avilla, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), e seus colegas se aventuraram. Em quatro temporadas de exploração de um sistema de cavernas do Sudeste do Tocantins, descobriram aquilo que se encaixa à perfeição no clichê de mundo perdido. Perscrutaram cerca de 40 cavernas e em 80% delas acharam fósseis. Uma mistura de espécies extintas e variações agigantadas de animais que existem hoje, como a onça.
Compreendida na divisa entre Tocantins, Goiás e Bahia, a região é de fato pouquíssimo conhecida. Há cerca de 15 cavernas cadastradas na Sociedade Brasileira de Espeleologia (área da ciência dedicada ao estudo de cavernas). Mas só o grupo de Avilla já esteve em 40 e, depois de análise de fotos aéreas, estima que esse número seja até dez vezes maior. Mundos perdidos que podem desaparecer antes mesmo de serem conhecidos, num momento em que ampliação da mineração no Brasil Central ameaça engolir formações geológicas inteiras.
Algumas das descobertas mais importantes do grupo de Avilla vieram da Gruta do Urso, uma das cavernas que não estava sequer catalogada. Como o nome indica, ela já devolveu a este mundo um urso pré-histórico, o finado urso brasileiro, muito parecido com o urso-de-óculos dos Andes, porém, extinto há mais de dez mil anos. O fóssil é raro, apenas três tinham sido encontrados até agora no país.
O urso brasileiro, porém, não foi o único animal significativo descoberto nessa caverna. De lá saiu um filhote de uma espécie nova para a ciência de tatu gigante - outro bicho extinto da Idade do Gelo - e uma miríade de outras criaturas menores, mas não menos importantes para a reconstituição dos ecossistemas do passado do Brasil.
A datação de um dos animais encontrados no Tocantins - uma espécie extinta de porco selvagem - é de 20 mil anos, período em que a Idade do Gelo ainda regia o clima do planeta e a composição da fauna e da flora era distinta da atual. Outros fósseis estão em processo de datação, mas os paleontólogos acreditam que boa parte da fauna antiga descoberta nas cavernas tenha aproximadamente a mesma idade. Porém, há possibilidade de existirem exemplares com até 120 mil anos de idade.
O ponto de partida para a exploração desse capítulo desconhecido da evolução da fauna do país é o município de Aurora do Tocantins. Seus cerca de três mil habitantes, em sua maioria, desconheciam a importância das cavernas.
- Fizemos palestras para a população. Educação ambiental é fundamental para preservar as cavernas. Algumas pessoas tinham medo delas - conta Avilla, cujo trabalho é financiado pelo CNPq e conta com a colaboração de nove instituições brasileiras e estrangeiras.
Conhecimento para a agricultura
Uma das características mais curiosas das cavernas do Tocantins é o fato de serem relativamente pequenas - muitas não passam de 250 metros. Em geral, cavernas com fósseis costumam ser grandes, mas as dessa região de Tocantins não são profundas - a Gruta do Urso, por exemplo, não chega a um quilômetro.
- Cada caverna é única. Não existem duas iguais. São ambientes tão isolados e fechados que o patrimônio de uma, seja geológico, biológico, arqueológico ou paleontológico, não será encontrado em outra. Por isso, é tão importante preservá-las - afirma o pesquisador.
Hoje o Sudeste do Tocantins é uma região de cerrado úmido. Até recentemente, pesquisas indicavam que há 20 mil anos, o clima era mais seco e a vegetação mais parecida com a que existe nos Pampas. Estudos conduzidos por Aline Freitas, porém, sugerem que o clima poderia ser mais úmido do que se imagina. Uma outra surpresa que só mostra o quanto o Brasil ainda precisa aprender mais sobre si mesmo. Não se trata de mera curiosidade. Pesquisas assim são minas de outro de conhecimento sobre variações do clima do passado, com impacto no presente. Mostram como se transforma a natureza e, com ela, o país em que vivemos, com impacto em áreas como agricultura.
Doutora em Geociências pela UFRJ, Aline está atualmente no Departamento de Geologia da Universidade Federal de Pernambuco. Ela é especialista numa área pouco conhecida fora dos meios acadêmicos chamada paleopalinologia, que estuda o ambiente do passado por meio da análise de pólen, esporos, fungos, microalgas e outras crituras microscópicas fossilizadas.
Uma reconstituição da fauna e da flora produzida pelos cientistas revela um mundo habitado por animais de grande porte - onças, tatus, veados, todos eram maiores do que os atuais - e criaturas extintas. O urso brasileiro, por exemplo, não conseguiu se adaptar à mudança no clima do passado e desapareceu do planeta.
- Uma das coisas que investigamos é porque alguns animais se extinguiram e outros se adaptaram e permaneceram. Isso pode nos dar informações relevantes para a conservação da biodiversidade - observa Avilla.
Hoje, a onça, por exemplo, ainda é relativamente comum na região. As onças pré-históricas do Tocantins eram cerca de 20% maiores do que suas parentes atuais. Elas pertencem à mesma espécie. Mas a onça, para sobreviver, encolheu. Para reconstituir como era a região, a equipe conta com estudiosos de numerosas áreas, como Aline.
As pesquisas nas cavernas do Tocantins ainda estão no início. E evidenciam como as cavernas brasileiras são ainda pouco conhecidas.
- Há um mito de que não temos muitos fósseis no Brasil. Temos muitos. A escassez é de pesquisas - destaca Avilla.
Fonte: Jornal da Ciência
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